segunda-feira, 12 de março de 2012

CÍRCULO MILITAR


Míriam Leitão


O país tem discutido, nos últimos dias, o passado do regime militar. É
tarde, mas não tarde demais. A sociedade decidirá o alcance desse
reencontro, mas o passado deve ser revisitado se o país escolheu jamais
repetir aquele erro. Novas informações surgem sobre histórias antigas, novos
caminhos jurídicos. Os militares repetem o velho enredo de vetar o debate. O
governo ainda não nomeou os integrantes da Comissão da Verdade.

Vladimir Herzog foi morto há 36 anos, com apenas 38 anos, horas depois de
entrar no DOI-Codi, no II Exército. Tinha endereço certo, dirigia o
jornalismo na TV Cultura, não demonstrou qualquer intenção de fugir,
apresentou-se para depor, nunca houve culpa formada, não se sabe do que foi
acusado, não se sabe até hoje como o mataram.

Uma nova foto, omitida na época, mostra o que sempre soubemos e dá mais
clareza à farsa montada para tentar esconder a verdade. Foi publicada nos
últimos dias no site organizado pelo deputado Miro Teixeira
(www.leidoshomens.com.br<http://www.leidoshomens.com.br>). Pelo ângulo se vê
que se quisesse cometer suicídio ele amarraria a faixa na grade superior. O
site mostra também uma carta do general Newton Cruz ao então chefe do SNI,
João Figueiredo, revelando a luta intestina dentro do aparelho repressor.

Nestes 27 anos de democracia já deveria ter havido a busca da verdade sobre
as circunstâncias das mortes e dos desaparecimentos políticos. Não é
revanchismo. É uma obrigação do Estado para com as famílias e a História.
Sempre que o assunto retorna, os militares calam a discussão. A fórmula é
conhecida: os da reserva fazem notas com protestos e ameaças veladas, os
comandantes da ativa fazem pressão por dentro, usando como prova da
insatisfação da tropa as notas dos aposentados. Assim se forma o círculo do
veto. O poder civil recua.

Herzog é uma das tantas feridas que não cicatrizam porque não é uma questão
de tempo, e sim de prestar contas do crime que o Estado cometeu. O governo
democrático não buscou os fatos com a diligência que a construção
institucional exige. Essa falha permite que os militares mantenham sua
versão. O general Luiz Eduardo Rocha Paiva afirmou na entrevista que me
concedeu que "ninguém pode dizer que ele (Herzog) foi morto pelos agentes do
Estado. Nisso há controvérsias. Ninguém pode afirmar". O Instituto Vladimir
Herzog reagiu com nota de repúdio.

Por que um general que estava até 2007 em postos importantes é capaz de
levantar tal dúvida?

Porque sempre que eles mandaram o país interromper a conversa sobre Herzog e
qualquer outro foram obedecidos. Em outubro de 2004, o "Correio Braziliense"
publicou fotos que supostamente eram de Herzog. Isso detonou uma crise
militar. O serviço de comunicação do Exército publicou uma nota em que
justificava torturas e mortes. "As medidas tomadas pelas Forças Legais foram
uma legítima resposta à violência dos que se recusaram ao diálogo, optaram
pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas
e desencadear ações criminosas."

O então ministro da Defesa, José Viegas, exigiu do comandante do Exército,
Francisco Roberto de Albuquerque, uma nota de retratação. O general optou
por uma nota na primeira pessoa em que dizia que aquela forma de abordar o
assunto não era adequada. O Exército jamais se retratou. O ministro Viegas
deixou o posto dizendo que o pronunciamento provava a persistência do
"pensamento anacrônico" da "doutrina de segurança nacional" em plena
vigência da democracia.

Esse não foi o primeiro nem o último evento em que os militares
constrangeram o poder civil. Foi o mais explícito porque Viegas deu
transparência aos fatos. Ele disse em sua saída que achava inadmissível que
as Forças Armadas não demonstrem "qualquer mudança de posicionamento e de
convicções". Disse que considerava inaceitável que se usasse o nome do
Ministério da Defesa para "negar ou justificar mortes como a de Vladimir
Herzog".

Lembrar esse episódio nos ajuda a ver como é persistente o veto militar a
duas providências fundamentais: procurar as informações que à época foram
negadas pela ditadura; promover uma renovação do pensamento das Forças
Armadas sobre seu papel naquele período.O general Rocha Paiva não é um ponto
fora da curva; ele representa o pensamento majoritário dos militares da
ativa e da reserva. Isso fica provado também no número de oficiais, que
estavam no comando até recentemente, que assinaram a nota de protesto dos
clubes militares contra a Comissão da Verdade. Eles pensam hoje o que sempre
pensaram. Rocha Paiva disse, por exemplo, que não há provas do crime do Caso
Riocentro (a transcrição na íntegra da entrevista está no meu blog).

Como o pensamento das Forças Armadas não foi atualizado, novas gerações
estão sendo formadas nessa convicção. O desvio tem se perpetuado. Eles ainda
defendem como legítimo o que houve nos 25 anos de exceção, ainda cultuam os
ditadores como heróis, ainda protegem os torturadores e sonegam informações.
Se o governo se deixar intimidar na Comissão da Verdade estará capitulando
diante da pressão do círculo militar.

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